sábado, 29 de setembro de 2007

O que me resta

Um dia eu não fui oco, nem vazio, nem uma folha em branco. Falava, muito. Conversava sempre. Discutia os problemas do mundo, dos amigos, os meus... Mas um dia acordei não conseguindo falar certas palavras. Abria a boca mas a palavra não saía. Era como se a palavra tivesse fugido de mim. Abandonara meu vocabulário. E com o tempo fui perdendo mais palavras. Não conseguia mais falar como antes. Raramente tentava conversar com alguém. Nunca mais discuti os problemas do mundo, nem dos meus amigos - mas eles tentaram discutir o meu problema. Não conseguia falar o que pensava. Como se todos meus pensamentos estivessem aprisionados em minha mente e eu não pudesse soltá-los para o mundo. Então lutei para nunca mais ter boas idéias. Boas idéias devem ser compartilhadas, devem ser realizadas. Mas minhas boas idéias estavam aprisionadas em minha mente. Eu queria gritar. Queria xingar. Mas só conseguia pensar. A última palavra que perdi foi "não". Então minha boca nunca mais emitiu um som sequer.
Escrevo essas coisas pois tenho medo. Medo da vida. Tenho medo de viver. Temo a vida. Só se vive uma vez, e viver assim é melhor morrer. Fico imaginando como deve ser depois de morto. Deve ser como antes de nascer. Sem vida. Sem Deus. Acho que os mortos não têm deuses. Os deuses foram criados pelos homens em vida. Deus criou a vida, eles dizem. Me pergunto se Deus já não morreu. Ou de tédio. Ou de velhice. Embora não queira viver essa vida sem palavras, odiaria ser eterno. Me cansaria, tudo. O piscar dos olhos, a batida do coração, urinar, defecar, comer, dormir, respirar. Me cansaria. E passaria o resto da minha vida tentando morrer. Às vezes me pergunto se a morte é eterna. A vida não é. Então por que a morte deveria ser? Será que um dia eu vou me cansar de estar morto? Não acho que seja muito justo isso. Haveria de ter um meio termo, talvez. Agora você irá passar 20 anos morto e depois 40 vivo. Seria ótimo. A morte seriam suas férias. Não faria uma viagem de férias, mas sim um funeral. Que ele descanse em paz, para retornar à vida depois.
Quando perdi todas as palavras eu tentei compensar a ausência delas com lágrimas. Mas um dia elas secaram. Devo ter chorado o suficiente para encher todo meu apartamento. Eu chorava e deixava as lágrimas pingarem em folhas em branco. Tentava escrever com elas. Palavras líquidas. Salgadas. Com o tempo fui ficando mais oco. Perdi a vontade de rir e de chorar, depois, os sentimentos se foram. Hoje já não sei de mais nada. Tanto faz.
Na verdade, existe algo que não foi embora. E preencheu todo o vazio. A saudade. De tudo.

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